Violência política nos EUA acelera com polarização e armas

Radicalização, discurso inflamado e interpretações divergentes da 2ª Emenda intensificam os episódios de violência armada no país

O assassinato de Charlie Kirk, ativista aliado do presidente dos EUA, Donald Trump (Partido Republicano), durante um evento na Universidade do Vale de Utah reacende o debate sobre violência política. Especialistas ouvidos pelo Poder360 associam o fenômeno à polarização crescente, facilidade de acesso a armas no país e retórica inflamável nas redes sociais.

Desde 2017, ao menos 10 casos resultaram em mortes ou ferimentos de figuras políticas e familiares nos Estados Unidos. O especialista em política internacional e professor da Berea College Carlos Poggio afirma que o episódio expõe “um presságio muito ruim para o futuro” dos EUA. Já Jonathan Freedland, colunista do jornal britânico The Guardian, entende o país está “à beira de outra era de violência política”, conforme descreve em seu artigo.

O mestre em direito pela University of Southern California Vinícius Bicalho lê o cenário a partir do acúmulo dos seguintes fatores:

polarização extrema;
retórica incendiária em redes sociais;
teorias conspiratórias de desumanização;
ciclo de intimidação que descamba em violência física.

ESCALADA DA RADICALIZAÇÃO

Nos últimos 10 anos, os norte-americanos testemunham um “aumento expressivo” da polarização, conforme observa Poggio. Ele destaca uma diferença em relação ao passado, quando figuras de autoridade atuavam na promoção de um discurso “mais civil”. Para ele, a radicalização atual permeia “não só a sociedade, mas também o topo da administração norte-americana”. 

Em declaração sobre a morte de Kirk divulgada pela Casa Branca, Trump culpou a “a esquerda radical”. Afirmou que a “retórica” dos integrantes do expectro político é “diretamente responsável pelo terrorismo que estamos vendo em nosso país hoje”.

O Poder360 levantou que, desde 2017, ao menos 10 casos de violência política afetaram figuras democratas e republicanas.

Além do assassinato de Kirk, a deputada estadual democrata Melissa Hortman e seu marido, Mark Hortman, foram mortos em casa em junho de 2025. No mesmo dia, o senador democrata John Hoffman e sua mulher, Yvette Hoffman, também foram atacados em casa, mas sobreviveram. 

Ambos os casos foram classificados como “assassinatos politicamente motivados” pelo governador de Minnesota, Tim Walz (Partido Democrata).

Trump também foi alvo de duas tentativas de assassinato em 2024: foi atingido por um tiro na orelha durante comício em julho, e, em setembro, teve de ser retirado de seu campo de golfe na Califórnia depois de disparos próximos.

Os especialistas destacam o papel das redes sociais, que amplificam conteúdos hostis e transformam emoções negativas em mobilização violenta. 

Poggio explica que algoritmos “priorizam o engajamento” e transformam “a dor em fúria”, porque “o ódio é uma das emoções que mais gera clique”. Isso facilitaria a radicalização de pessoas capazes de traduzir “o ódio on-line para violência real”, estimulando “atacantes e lobos solitários”.

A combinação de discurso inflamado e um país com alta taxa de armamento cria terreno fértil para a escalada de violência, segundo Poggio e Bicalho.

A 2ª EMENDA

Os EUA lideram o ranking mundial de posse de armas, com estimativas entre 200 milhões e 350 milhões em circulação, segundo Freedland. Ele acrescenta que para cada “100 norte-americanos, há 120 armas”.

O direito de posse é garantido pela 2ª Emenda da Constituição dos EUA. Eis a íntegra (PDF – 99 kb). Eis o que diz: “Sendo necessária à segurança de um Estado livre a existência de uma milícia bem organizada, o direito do povo de possuir e usar armas não poderá ser impedido”.

Bicalho explica que, desde a decisão em District of Columbia v. Heller (2008), a Suprema Corte “consolidou” o direito individual de possuir armas. 

Ele acrescenta que em New York State Rifle & Pistol Association v. Bruen (2022) a Corte ampliou a proteção do porte fora de casa e impôs um teste histórico que “tem levado tribunais a derrubarem algumas leis estaduais”, restringindo o espaço regulatório para novas leis de controle de armas.

Algumas interpretações da 2ª Emenda reduzem seu propósito a um direito absoluto e individual em que qualquer cidadão pode ter e portar armas em qualquer circunstância. Defensores dessa leitura isolada alegam que qualquer restrição é inconstitucional. 

Charlie Kirk defendia que armas eram “fundamentais para a liberdade individual”. Ele chegou a afirmar: “vale a pena ter o custo de, infelizmente, algumas mortes por armas todos os anos para que possamos manter a 2ª Emenda”.

Bicalho ressalta que “o acesso a armas aumenta o potencial de dano quando incidentes ocorrem”, mas diz tratar-se de “uma correlação difícil de ser feita de forma convicta” quanto à frequência da violência política. Segundo ele, não há “evidência robusta de que essas decisões [da Suprema Corte sobre o direito a armas], por si, causem violência política”.

ARMAS – VENDAS E MORTALIDADE

O temor de futuras restrições às leis de armas devido às eleições em 2020 intensificou as vendas e atingiram um pico de 22,7 milhões de armas vendidas no ano. A pandemia de covid também impulsionou as vendas.

Naquele ano, os EUA enfrentavam isolamento social e instabilidade econômica. A eleição presidencial de 2020 também foi um catalisador, por aumentar preocupações com liberdade e potenciais mudanças nas leis de controle de armas, como verificações de antecedentes mais rigorosas, períodos de espera ou proibição de certos armamentos, levando cidadãos a adquirir armas preventivamente.

Como detalha a SafeHome, as vendas de armas nos EUA diminuíram anualmente. Em 2024, foram vendidas 16,2 milhões, redução de 28,6% em relação a 2020. Nos primeiros 4 meses de 2025, foram vendidas cerca de 5,2 milhões de armas.

Em 2023, segundo o CDC (Centro Nacional de Estatísticas e Saúde), 17.927 pessoas morreram por armas de fogo. No total, foram cerca de 47.000 mortes por causa desse tipo de armamento, sendo aproximadamente 60% suicídios.

O Pew Research Center mostra que cerca de 8 em cada 10 assassinatos envolveram arma de fogo, número “muito maior do que na maioria das outras nações, particularmente nas nações desenvolvidas”.

Estados como Wyoming, Montana e Alasca possuem as maiores taxas de vendas de armas ajustadas à população. Montana, por exemplo, tem a maior taxa de posse de armas, com 66,3% dos domicílios, seguido por Wyoming (66,2%) e Alasca (64,5%). A taxa nacional fica em 44,1% dos domicílios com armas de fogo em 2025. Os dados são da World Population Review. 

DEMOCRACIA EM RISCO

Bicalho alerta que o “medo afasta candidatos qualificados, intimida servidores públicos e desestimula a participação cívica”. Além disso, a normalização de ameaças corrói a confiança institucional e reduz a qualidade do debate público.

Bicalho menciona gargalos como “volume de ameaças em alta, coordenação interestadual desigual, judicialização intensa de leis de armas e a migração do assédio para táticas híbridas (on-line/off-line)”.

Isso pode provocar “zonas de veto pela intimidação”, nas quais decisões são moldadas pelo risco de violência, não pelo mérito, afirma o especialista.

Fonte: https://www.poder360.com.br/poder-internacional/violencia-politica-nos-eua-acelera-com-polarizacao-e-armas/

Deixe um comentário