Saiba como o Irã reprime mulheres que não seguem as regras do regime

Iranianas são obrigadas a usar hijabs em público, recebem punições mais severas em julgamentos e não podem fazer viagens internacionais sem autorização

Depois do ataque dos Estados Unidos ao Irã em junho deste ano, Reza Pahlavi, filho do monarca forçadamente deposto durante a Revolução Iraniana, ofereceu-se para liderar a transição de poder no país.

Desde 1979, o Irã é uma teocracia na qual o líder supremo, o aiatolá, governa sob os preceitos do Alcorão (livro sagrado do islamismo). Na época, diferentes grupos da sociedade se uniram para derrubar o xá Mohammad Reza Pahlavi (1919-1980). O objetivo era interromper seu governo autocrático e ocidentalizado.

Sob o regime dos aiatolás, passaram a ser comuns os relatos de violação de direitos humanos, liberdades sociais restritas e economia prejudicada (por sanções estrangeiras).

A mudança do tratamento das mulheres iranianas é uma das principais reivindicações de opositores do governo –e de parte da comunidade internacional.

“Quando o 2º Xá foi derrubado pela Revolução Islâmica, foi algo totalmente negativo para as mulheres. Tudo se tornou antimulheres”, afirmou ao Poder360 a professora Nayereh Tohidi.

Logo após a tomada do poder, o então líder supremo Ruhollah Khomeini (1902-1989) revogou o pacote de Leis de Proteção à Família, implementado em 1967 e atualizado em 1975. O conjunto garantia uma série de direitos às mulheres.

A suspensão levou à redução da idade mínima de meninas para casamentos: passou de 18 anos para 9 anos. Uma década depois, feministas e ativistas conseguiram mudar para 13 anos.

O regime também tornou obrigatório o uso do hijab, véu que cobre os cabelos. A abaya, que cobre grande parte do corpo, também se tornou acessório obrigatório para todas as mulheres a partir dos 9 anos de idade.

As leis islâmicas foram aplicadas à esfera pública. Isso significa que mulheres e homens só poderiam andar juntos em público se fossem casados, irmãos ou pai e filha.

Integrantes da Guarda Revolucionária (divisão das forças armadas iranianas criada durante a revolução) poderiam prender quem violasse as regras, e podiam entrar nas casas se suspeitassem de interações não permitidas e o consumo de álcool. A Guarda Revolucionária também é conhecida como a polícia da “moralidade”.

A VIDA ATUAL DAS IRANIANAS

De acordo com a organização Iran Human Rights, em 2025, as iranianas ainda enfrentam as seguintes circunstâncias:

acesso limitado ao divórcio;
proibição de viajar internacionalmente sem autorização do marido;
necessidade de autorização do pai, maridos ou promotores para obterem passaportes;
punições mais severas em crimes, incluindo morte em casos de adultério. Homens podem argumentar que estavam em casamentos temporários;
idade mínima de 13 anos para casar-se, mas pode ser menor ainda com o consentimento dos responsáveis;
necessidade de usar hijab e roupas folgadas em público;
obrigação de dirigir cumprindo os códigos de vestimenta;
repasse de metade de valores de herança;
impossibilidade de serem líderes supremas e representatividade limitada na política; e
metade do direito de herança previsto para homens

Em setembro de 2022, Mahsa Amini, uma jovem de 22 anos, foi detida pela Guarda Revolucionária por não usar “corretamente” o véu islâmico. Três dias depois, morreu em um hospital na capital. O Estado afirmou que a jovem teve um ataque cardíaco, mas sua família diz que a causa da morte foi um espancamento.

HISTÓRICO DE RESISTÊNCIA

A morte de Amini deu origem ao movimento “Mulher, Vida, Liberdade”. A discussão sobre direitos das mulheres se tornou mais ampla.

Para Nayereh, deve-se manter uma perspectiva otimista. “Uma coisa que não puderam impedir foi a educação pública. E as mulheres se tornaram muito ativas em obter educação. A matrícula de mulheres nas universidades é maior que a dos homens. É de pelo menos 52%”. 

O apoio internacional também ajudou a valorizar a luta feminista, segundo a acadêmica. “[Os governantes] não puderam censurar tudo. Então as mulheres se tornaram muito conscientes de seus direitos, e gradualmente começaram a se rebelar”.

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NAYEREH TOHIDI

Reprodução/YouTube @californiastateuniversity

Nayereh Tohidi tem 74 anos. É professora na California State University, Northridge (EUA)

Nayereh é professora universitária há 27 anos de estudos feministas e fundadora do departamento de estudos islâmicos da California State University, Northridge. Tohidi também é assistente de pesquisa no Centro de Estudos do Oriente Próximo na Universidade da Califórnia em Los Angeles.

A especialista também já foi consultora da ONU (Unicef e UNDP) em projetos de gênero, mulheres e desenvolvimento no Oriente Médio e na Eurásia, e já representou ONGs de mulheres na Conferência Mundial da Mulher de 1985 e 1995 da ONU.

Leia a íntegra da entrevista abaixo.

Poder360 – O que mudou na vida das mulheres depois da Revolução Iraniana de 1979?
Nayereh Tohidi – Antes de tudo, é importante dizer que o movimento de hoje de resistência das mulheres não aconteceu da noite para o dia. Foi formado por meio de um processo muito longo, que começou no início do século 20 durante a revolução constitucional no Irã. A 1ª geração de feministas iranianas emergiu durante essa era, porque o discurso era baseado no discurso do iluminismo europeu. Individualismo, liberdade, direitos humanos, cidadania, direito ao voto. 

Mais tarde, você tem o processo de modernização que os xás Reza Shah e depois Mohammad Reza Shah trouxeram, que foi um processo autocrático, autoritário, de cima para baixo, que não deu muita agência às mulheres. Na realidade, as organizações independentes de mulheres foram fechadas, mas suas políticas não eram contra as mulheres. Pelo menos eram modernas, estavam tentando se tornar como países ocidentais, desenvolver, ter pessoas mais modernas e educadas, então queriam educação para mulheres.

De certa forma, o legado da era Pahlavi, o Xá, o 1º e seu filho, foram positivos para as mulheres, porque mesmo que não fossem democratas, eram como algumas das reformas que o príncipe Mohammed Bin Salman está fazendo agora na Arábia Saudita. No Irã, o acesso à educação, emprego e saúde das mulheres foram melhorados durante o governo desses monarcas. 

Mas os direitos pessoais das mulheres na família permaneceram baseados na Sharia. Isso significa que a poligamia ainda estava lá, embora mais tarde tentaram limitá-la, mas também que os homens eram o chefe da família. Quando o 2º Xá foi derrubado pela Revolução Islâmica, foi algo totalmente negativo para as mulheres. Tudo se tornou antimulheres. Exceto uma coisa: eles precisavam do ativismo das mulheres fora de casa também. Diferentemente dos conservadores tradicionais que eram contra o envolvimento das mulheres na política, Khomeini encorajou as mulheres a se envolver na política. Por quê? Porque ele precisava do apoio delas. Tudo mudou completamente em favor dos homens. Não apenas a esfera privada, mas também a pública, especialmente em termos de direitos legais, que ficaram sob o controle dos homens.

De quais formas as mulheres resistiram e ainda resistem?
Uma coisa que não puderam impedir foi a educação pública. E as mulheres se tornaram muito ativas em obter educação. As iranianas se saíram muito bem até no nível superior nas universidades. Mesmo agora, a matrícula de mulheres nas universidades é maior que a dos homens. É de pelo menos 52%. Às vezes, chega a 60%. Quando são educadas –e especialmente após a introdução da internet, redes sociais– as mulheres se globalizam.

Por isso falo muito em meus estudos sobre processos globais. Essa pressão local, limites locais estão interagindo com conquistas globais que as mulheres obtiveram, com discursos feministas que aprenderam, e os islamistas não puderam impedir tudo isso de eclodir. Não puderam censurar tudo. Então as mulheres se tornaram muito conscientes de seus direitos e gradualmente começaram a se rebelar e formar grupos feministas e movimentos e campanhas.

A repressão atual do governo iraniano é pior para as mulheres e ativistas femininas?
Ainda não sabemos em termos de direitos das mulheres –por exemplo, liberdade, uso do hijab. Acho que foi afrouxado graças ao movimento Mulher, Vida, Liberdade e também ao novo presidente Masoud Pezeshkian, que não é tão repressivo e está tentando proteger alguns dos direitos das mulheres.

Até agora, em termos de hijab, as coisas melhoraram um pouco –apenas um pouco. Porque ainda aqueles linha-dura fazem o que querem fazer, indo além das autoridades governamentais. Eles simplesmente assediam mulheres, as ameaçam, danificam seu carro, por exemplo, e então ninguém vai processá-los por fazer isso. 

Mas agora, após esta guerra, ainda não sabemos o que vai acontecer. Sabemos que a sociedade civil foi enfraquecida. Foi ameaçada. Agora eles estão tentando justificar essas execuções, e eles mesmos anunciam que prenderam 700 pessoas. E essas 700 pessoas não são apenas pessoas comuns, são ativistas. São líderes das organizações da sociedade civil. Se estão na prisão, claro, vai impactar muito negativamente a agência da sociedade civil e as possibilidades de organização.

Também cortaram a internet, e isso é uma grande barreira. Por mais que funcione em alguns momentos do dia, eu perdi o contato com amigos e alguns dos meus familiares. Não temos uma maneira de nos conectarmos diariamente. É algo que é interrompido, e depois volta.Quanto às mulheres especificamente, teremos que esperar para ver. Estamos num momento em que diversas ativistas proeminentes foram perseguidas. 

Em um artigo publicado em 2016, a senhora afirmou que essa repressão melhorou um pouco por causa das mulheres e sua resistência. Acha que os homens iranianos são a favor dessa mudança ou é unilateral?
Sim, os homens desempenharam um papel muito positivo e de apoio no movimento Mulher, Vida, Liberdade. Acabei de terminar um artigo sobre o papel dos homens nesta luta. Nem todos os homens estão presentes, mas foi sem precedentes ver tantos deles irem às ruas –e às vezes até serem mortos por apoiarem isso. Principalmente homens mais jovens, mas também homens de meia-idade. Pais, muitos pais dessas jovens feministas que são ativas no movimento as apoiavam. Não apenas mães, mas também pais.

A política de gênero e as relações de gênero no Irã mudaram. Não para todos, mas houve uma mudança paradigmática muito importante. Homens começaram a sentir a mesma necessidade de autonomia corporal que as mulheres reivindicam. Homens jovens já foram atacados por terem cabelo longo, não se vestirem de um jeito másculo. Isso afetou a todos. Até crianças de alguns clérigos dentro de sua família estão se levantando contra o patriarcado dentro da família.

Por exemplo, meninas também querem, como meninos, andar de bicicleta ou motocicleta. E dizem: não há nada no Corão ou no Islã que proíbe meninas de andar de bicicleta. Então por que você está dizendo isso? Eles se tornaram muito desafiadores e mais confiantes para fazer isso. Tanto filhos quanto filhas dessas famílias patriarcais conservadoras. Temos muitos estudos sociológicos no Irã agora que mostram sinais esperançosos de diminuição patriarcal, diminuição da popularidade do patriarcado. O patriarcado foi realmente desafiado e abalado.

A senhora mencionou o movimento “Mulher, Vida, Liberdade”, que se popularizou depois da morte da jovem Mahsa Amini em 2022. Na sua avaliação, os protestos pelo mundo conseguiram provocar algum tipo de mudança política?
Sim, foram muito úteis. Isso ainda mantém as pessoas sentindo que não estão sozinhas, não são esquecidas. As pessoas ainda apoiam seu movimento. Então sim, isso foi muito importante. Apoio internacional, simpatia internacional. Foi um fator muito importante.

O que mudou dentro do Irã depois que este movimento emergiu?
Depois deste movimento, a maneira como as mulheres aparecem na rua, na arena pública, e demonstra confiança mudou. Elas completamente ignoram a polícia –e apenas têm resistido. E não apenas isso. A maneira como os homens olham para as mulheres também mudou. Eles não as enxergam mais como objeto sexual, ou de maneira desaprovadora. Eles apenas se tornaram mais respeitosos. Levam-nas mais a sério. E isso se mostra até na rua, no bazar, nas lojas. E quando atacam, incidentes de ataques contra mulheres que não usam hijab, as pessoas vêm ajudá-las. No passado não tínhamos tanto isso, mas agora acontece. Por isso alguém que quer atacar uma mulher tem que pensar duas vezes. Porque as pessoas salvam essa mulher do ataque e atacam o homem que está atacando essa mulher.

Então a população em geral mudou?
Quando as pessoas fazem trabalho de campo e estudos sociológicos, veem que as pessoas mudaram, não apenas em termos de gênero, mas em termos de questões ideológicas. As pessoas agora estão muito contra o Estado teocrático, contra usar a politização da religião e fé, e são muito firmes em enfatizar o secularismo. Isso não era o caso, digamos, 20 anos atrás. Você nem podia usar a palavra secular. Agora muitas pessoas entendem o que secular significa. Dizem que entendem que não é necessário ser anti-religião, são contra trazer sua religião para a arena pública e forçá-la nas pessoas. Então estão cansados. Estão enjoados do islamismo, qualquer religião que se torna um “ismo” e é forçada em mulheres ou homens. Estamos no estado pós-islamista agora no Irã. Isso é certo. Isso se reflete nos estudos do governo, que tenta manter os resultados escondidos, mas alguns membros revelam os resultados. Mais de 80% das pessoas são contra o Estado islâmico, contra o governo da Sharia. Estão demandando alternativa secular.

A senhora acha que algum dia haverá uma presidente mulher no Irã?
Não, não sob este governo. Impossível. A menos que mudem a lei, porque a lei é contra isso. Mesmo tendo uma ministra, é bom simbolicamente, mas eles não permitem que ela seja efetivamente influente na arena política. As mulheres que estão no Parlamento são principalmente como uma espécie de símbolo, de vitrine. Mas algumas ainda usam o parlamento de maneira muito inteligente. Não mostram sua orientação real, mas quando já estão no Parlamento, começam a falar sobre direitos das mulheres, e começam a agir como agentes críticos para mudança. Mesmo com essas mulheres, a porcentagem de participação das mulheres no Parlamento no Irã é muito baixa comparada até com o resto do Oriente Médio. É cerca de 9%, apenas. 

Fonte: https://www.poder360.com.br/poder-internacional/saiba-como-o-ira-reprime-mulheres-que-nao-seguem-as-regras-do-regime/

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